Circe Clingert
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Portfólio de
Experimentações gráficas em livro e vídeo
▩ A CASA (2020)
vídeo e ambientação sonora: Circe Clingert
Texto: Thyana Hacla

O vídeo é um desdobramento de uma imersão durante as aulas de paisagem sonora no "CEFART" somado a uma reflexão sobre o espaço da casa. A primeira versão do vídeo foi feita para o instagram

A porta range abrindo com o vento. a casa é solitária, seus corredores ecoam o vazio de cada cômodo. os ruídos do silêncio desabitado ocupam o espaço-ambiente. o que vem de fora ressoa pela casa. As paredes brancas refletem a cor da luz que entra projetando oblíquas sombras. As sombras marcam as horas, movimentam-se pela casa. O vento desperta a casa. As correntes de vento fazem dançar as cortinas e levantam as partículas de poeira, que também dançam, e ao serem iluminadas pelo sol brilham como tímidas e melancólicas estrelas. o vento invade a casa entrando pelas frestas, pelo vão da porta, pelos buracos, rachaduras e fissuras. Quando chega violento, o vento uiva, às vezes ele chora ou assobia, outras vezes ele canta em peculiares harmônicos. O acorde que o vento toca acorda a casa. Nessa música os insetos percussivos intervêm junto aos outros sons que chegam da mata ou da rua. O mundo externo adentra a casa. As folhas secas se acumulam no jardim, e no muro plantas nascem em meio ao rejunte e as trincas do concreto.

A casa não está abandonada, ele é apenas solitária e antiga. A casa é tão antiga quanto a única presença humana que a habita. A Senhora que arrasta suas encardidas pantufas rosas combinando com o robe felpudo que cobre a pele velha e ferida. Todas as manhãs ela bate os lençóis no ar que se abrem como velas içadas. As estrelas tímidas reaparecem, mais agitadas e brilhantes, atiçadas pelo gesto de arrumar a cama, as partículas de poeira movem-se em espiralados rodopios descoordenados. A senhora contempla essa delicada dança em silêncio, o silêncio é sua fala de solidão. É uma fala feita de escuta, resposta ao silêncio ruidoso que é seu inquilino e companheiro, habitante desta casa. E como se temesse incomodá-lo demasiado, para não espantá-lo com sua presença, a senhora arrasta os sapatinhos em pequeninos passinhos lentos, tão devagarinho é seu caminhar, que cria a ilusão de que ela permanece imovél como os móveis da casa. Ela sempre imagina que os móveis é que se movem, pois a cada nova manhã eles parecem ocupar um novo lugar, tudo parece estar diferente.Ela nunca se lembra se eles realmente estavam ali, ou acolá. Assim como ela nunca se lembra dos copos que surgem entre os vasos de planta. Mesmo assim pela força do ritmo ela segue a partitura dos dias, e sai recolhendo os copos pela casa enquanto rega as plantas. Esse gesto torna ainda mais longo o seu trajeto. Ela caminha em ondas pela casa, avançando e recuando com a água. A água sempre termina antes de completar o caminho, obrigando-a a retornar, e sem resistência ela volta e retoma o gesto, e a cada retorno um copo novo chega antes dela no destino da cozinha, eles ficam lá sobre a pia acumulando-se enquanto á esperam. Quando por fim o corredor termina com todas as plantas tranquilas e de terra úmida, agradecidas por essa chuva-mar, e não sobram esquecimentos fora de lugar, ela chega ao seu destino. Na pia a senhora continua a manipular a água, e na repetição do gesto sua mão entra e sai do jorro de água corrente, deslizando sobre o vidro dos copos lagoinha. A espuma branca escorre. A água é o som mais alto da casa, fazendo seu solo enquanto a Senhora escuta, concentrada no gesto-dança que executa. Ela e a água conversam até que o gesto de fechar a torneira interrompe esse diálogo, devolvendo o protagonismo ao ruidoso silêncio.
O silêncio dura a eternidade de segundos até que ele seja também interrompido por um gesto.

A senhora agora prepara o café, o som do gesto ritualístico é acompanhado pelo aroma que percorre a casa até o lado de fora. Na rua é possível sentir a soma dos aromas que vem da sincronia dos gestos repetidos nas casas da vizinhança. A solidão parece menor no breve encontro dos aromas. Ela desfruta o cheiro de café. O cheiro é uma resposta de bom dia que chega da casa da vizinha. A senhora então sabe que são sete horas de um dia de semana. O café marca o tempo no relógio do cotidiano. Os gestos se repetem no hábito, mas os ritmos são variados, até mesmo assíncronados. Enquanto nas outras casas o café anuncia a saída, a correria, o trabalho, o entra e sai que se inicia pelas casas vizinhas. Nessa moradia o café é lento. O café já não acelera o ritmo cardíaco do corpo velho e habituado a sua cafeína, a Senhora, toma em goles curtos o café que esfria no copo. Ela não senta na mesa, não come nada, somente caminha pela casa. A Senhora aguarda o retorno do silêncio após o aquietamento do movimento externo.

Enquanto caminha, ela passa a mão pelas plantas, recebendo um pouco de carinho ao sentir a resposta firme das folhas. Ela sente a vitalidade silenciosa das plantas. Ela compreende o tempo das plantas. A Senhora é tão antiga quanto uma árvore. Ela já viu a história do homem e agora aprende com as plantas sobre sua humanidade. Ela perdoa as dores do passado em seu silêncio. Na solidão dos dias ela encontra consigo mesma, e se prepara para receber a sua última visita.Ninguém mais frequenta esta casa.

Ela limpa todos os cômodos todos os dias, mas seu corpo rígido faz desta tarefa uma epopeia. Assim a poeira encontra seu canto, para viver tranquila junto a aranhas e outros seres miúdos, que habitam em sussurros e cochichos tão baixinhos que são abafados pelo som do ruidoso silêncio. A casa vive como uma floresta, no seu ritmo de vida, como um ecossistema tranquilo.

A senhora segue continua nessa rotina-escuta, vagando por sua própria casa. Ela executa tarefas inventadas, sem valor aos olhos de quem não precisa preencher o vazio dos dias e as lacunas do tempo. Os dias são essa espera que ela segue pelo tempo nesse estado de escuta atenta, talvez para não perder a hora.

Ela escuta a casa se movimentar, nessa respiração do vento percorrendo o corpo da casa. Ela sabe que enquanto os pulmões se movimentam,enquanto o ar entra e sai, perpassando os corredores da casa e sentindo o pulsar do ritmo cardíaco- percussivo marcar o tempo, haverá vida ali.

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Link do vídeo no instagram

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